23 de dez. de 2010

Dos Medos de Escuro



Notei as pontas dos meus dedos (médio e indicador) bem amareladas. Pensei em parar de fumar, mas me decidi por apenas pintar as unhas de preto. Preto. Aos poucos você se acostuma com a escuridão. O negro dos olhos da mulata não assusta o sambista, que mesmo em trajes alvos, lembra com orgulho de sua mãe África.
O luto, por exemplo, nunca me impressionou. Eu mesma não conheço uma solidão preta, pra mim, todos os tipos de tristesa são brancos. E a mim, a solidão se mostra triste. As vezes sou sozinha, então me imagino angolana, descalça na rua, a dançar qualquer música de rua. Imaginar também é triste. É diferente de sonhar. Quando se sonha, de fato se acredita, se ilumina a alma. Quando só imaginamos, é como um sonho com defeito. É um sonho sem esperança. A solidão é também um pouco sem esperança.
Mas volto para minhas unhas, algumas roídas, esmalte gasto, vermelho e já bem velho. O cigarro apagou, a fumaça azul ainda pinta o quarto indo de encontro com os últimos suspiros do sol. Abaixo os olhos novamente. O que me incomoda mesmo é esse frio nas mãos.

28 de nov. de 2010

Paralisia Visual



Gritei o mais alto que pude. Berrei e esperniei por cada poro de minha pele. Tudo isso em um segundo, sem que tu notaste. Nem sequer soubeste da minha presença. Eu estava lá, invadindo teus sonhos, forjando teus livros, sumindo com o açúcar do teu café. Tão ligeira, que tu apenas deixaste cair um copo quando bati o portão do lado de fora.
Eu já era invisivel aos teus olhos antes, mas tu sempre foste meio dado as cegueiras da alma. Outro dia soube de um moço morto por ser cego da cabeça e seco do coração, tive medo de que pudesse acontecer contigo desgraça igual. Então roubei os óculos de meu avô, e deixei em nossa antiga estante, bem em cima de Felicidade Clandestida. Mas acho que não me ouviste muito bem.

7 de nov. de 2010

Outro Adeus


Ah, menina, mas uma vez te pergunto: por que tu foges? Acaso não gostas quando te chamo de bonita? Assim, sempre correndo, mal tive tempo de memorizar teu rosto, tuas linhas, tuas ancas. Minha bonita, que nem chegou a ser minha, mas que a beleza não se pode negar. Bem sabes que não te prometi assassinar o passado, mas o plano era renascer em ti um futuro.
Se bem me lembro, a luz que atravessava a cortina desenha flores em tuas pernas. Eu quis rir. Mas não ví graça. Mordi os labios, como que para segurar a dor de minha premonição, mas sem entender, tu estavas a repetir meus gestos. Em algúm lugar uma porta bateu. Senti um arrepio na nuca, tu partirias em poucos segundos.

8 de out. de 2010

De Mãos Dadas




Me acostumei a te chamar de lar. Já fiz de teus braços meu travesseiro e de tua voz trilha sonora. Já fiz de tua pele meu cobertor. Moro em ti, me aconchego em teu pescoço arrepiado, tua respiração é meu marca passo. Nossa cama é nosso jardim, e a luz da manhã será sempre nosso despertador.
E assim vou acordar todos os dias, com o cheiro de café fresquinho, sorrindo pra ti, dentro de uma grande camiseta branca, esfregando os olhos, vou lembrar que te amei por cada segundo e assim seguirei vivendo. Em ti, em nós.
E se o acaso resolver nos pregar uma peça, se algum dia a manhã vier trazendo a chuva, vamos sair na varanda e sentir a água dura se chocando contra nossas peles. Segurarei tua mão, e então, todo meu medo fugirá de nós. E isso é o que eu vou chamar de felicidade. A sensação de poder sorrir, mesmo que por dentro, e saber que tu estarás sorrindo ao mesmo tempo. Não soltarei tua mão no meio da noite, nem no baile de carnaval. Meu sorrir não pode agora perder o abrigo que tanto procurou.

6 de set. de 2010

Hoje Eu Sei



Quando eu soube? Logo na primeira manhã. Nas primeiras horas do dia, junto com os primeiros raios de sol, teus primeiros suspiros, minhas primeiras certezas. Aí eu soube o que era aquilo. Sem promessas, sem troca de telefones, sem cinema no domingo. Tinha apenas tua pele completamente branca, teu corpo miúdo, e o resto de nossas vidas.
Se tu não foste como gatos, nunca te saberia. Existe algo de felino em tua natureza, em teu silêncio, tua preguiça. E quando a manhã chega em nossa janela, pintando tua pele de amarelo, tu te faz de desentendida, te esconde em meus ombros, me faz atravessar teus sonhos. Ah! Mas que belos sonhos tens! E foi dentro de ti que construi meu jardim, que fiz minha morada, que te fiz namorada.
Tudo assim, na primeira manhã. Te ví sorrindo, coçando um dos olhos e com o cabelo cheio de nós me estendeu uma mão esguia e fria. Nunca houve em minha vida, terremoto mais devastador como quando te desenhei nua sob meus olhos. Com o domingo crescendo, o lençol entre as pernas, e eu entendendo que esquecia a madrugada escura.
Carrego a certeza que não dormirei se não te tiver ao meu lado, e que quando a manhã chegar, não hei de querer partir. Que essa manhã não termine hoje, mesmo agora, depois tantas outras, te aprendo todos os dias.

19 de ago. de 2010

Menina


Ah! Menina, se tu soubesses que teu nome é poesia!
Se não fosse eu a culpada pela efemeridade de sua inocência!
Ah! Menina, se fôssemos hoje outras e não quem um dia sonhamos ser!
Menina, eu gritaria teu nome em frente aos teus portões, desenharia em tua calçada o caminho para o céu. Seria tua.
Te faria menina todos os dias, pintaria tuas paredes com as sete cores do arco-ires, te chamaria de minha.
Ai, menina! Se não fosse o nosso ontem, o que seria de nós? E o que sou eu? Sem teu olhar ligeiro, sou só alguém a pensar. Alguém a soletrar teu nome como música, pra ninguém escutar.
Menina, menina... Teus olhos inebriam, tua pele é a prova da evanescência de nossas vidas.
E sobre ti? Minha pequena menina, ainda és doce, ainda sim podes ser amarga quando queres. Sobre ti? Já não és mais minha, já não és mais menina.

6 de ago. de 2010

Assassinato

Te matei. Te enterrei, levei até flores no teu túmulo.
Chorei, foi uma morte lenta, dolorosa. Mas que só doeu em mim.
Não porque te amava, mas porque te admirava. Porque queria ser você. Foi como quando John Lennon morreu, lembras? Mas tu ainda vives. Em algum lugar, talvez naquelas ruas escuras e frias que frequantávamos. Não me perguntes por que fiz isso. Fiz pois tinha de ser feito. Foi como terminar com a noite para que o dia chegasse.
Assassinei-te pois eu tinha fome de vida. Tinha ânsia de felicidade.
Chorei, mas agora posso sorrir. Foi simples assim. Não, na verdade foi difícil. E ainda espero poder sorrir.
Não tinha sangue em minhas mãos, mas mesmo assim lavei cuidadosamente cada pedaço de unha em meus dedos. Por outro lado não fiz questão de apagar as provas deste crime.
Expulsei tua alma da minha sala. Rasguei nossas fotos. Bebi nossas cervejas.
Quando te tinha em minhas mãos, olhei firmemente em teus olhos, prendi o choro, e cravei em ti todo meu ódio. Quem sabe até todo meu amor.
Te asfixiei, e não espero que me perdoes. Se por um segundo tu vieste a virar um fantasma, sei que não irias me procurar.
Agora me resta apenas alguns dias de luto, e um maço de cigarros que trouxe do outro hemisfério.
Te matei dentro mim, e só agora posso viver.

19 de jul. de 2010

Autobiografia

E então ela continua no mesmo lugar, de mãos atadas e esperando o próximo dia. Sentada, ou talvez esquecida, em um canto da praia, fingindo prestar atenção ao festival de cores no céu. Ela não está realmente lá. Mas guarda isso como seu maior segredo. Todos podem vê-la, e mesmo assim, ela não está lá. Poderia encontra-la em qualquer outro quintal, tentando fazer poemas com a acidez do sol, mesmo no inverno. Sempre com o cabelo amarrado para que o vento frio possa gritar, estridente, em seus ouvidos.
Se ela soubesse como, escreveria uma carta de amor com aquele mar. Falaria do horizonte geométrico que encontrou do outro lado do Equador, e só. Nada além do que já foi previsto em qualquer outro tarot, tantas vezes lido, que ninguém sabe mais o que dizer. Nada.
Atrás dela um corvo grita, como quem quer alertar de que apesar do calor já é tarde. É melhor colocar seus óculos escuros no meio da noite para continuar sendo invisível no meio da multidão que vem caminhando.
She probably doesn't know what she's thinking.

24 de jun. de 2010

Sem Vontade

Abriu lentamente os braços e sentiu um pouco de vida indo embora pela porta. Petrificada, só conseguia olhar para o corredor escuro, e agora vazio. Não se incomodava com o vento gelado que subia pelas escadas, e nem tão pouco com sua vizinha tocando violão. Seu maior desespero era fechar aquela porta, diante do nada.
O breu que tomava conta da entrada principal já tinha dominado toda a casa, e aos poucos ela foi perdendo seus sentidos. Não tinha mais paladar, o gosto amargo que restava em sua boca desapareceu. Imperceptivelmente, ficou cega e deixou de ver o futuro. Era muda fazia horas. Mas nunca ficou surda. Não podia deixar de ouvir aqueles passos duros de quem vai embora, mesmo sem querer.
Tinha vontade de gritar, sair correndo, ser invisível e até não existir. Mas o que mais ela poderia fazer, se a porta ainda estava aberta, e ela continuava lá, imune ao resto do mundo, mas estraçalhada diante de um vulto fugitivo. Procurava não achar resposta para tantos por quês.
Não podia mais ser mulher. Não podia mais ser.
Talvez minta quem não olhe nos olhos ao falar. Talvez até haja covardia demais para se encarar uma pessoa nos olhos. Então sentiu um pouco de dor, fechou a porta, e conseguiu respirar novamente.

20 de jun. de 2010

Olhos de Amêndoa

Procurava qualquer fração de sol na esperança de aquecer seus sonhos. Nas mãos levava um xícara de café com leite. Logo ela que nunca gostou de leite, ou das coisas claras. Ainda se lembrava das mechas negras caídas sobre o rosto daquela à quem chamava de "pequena".
Já fazia tempo que o fim tinha se concretizado, destruindo todos os sorrisos pintados nas paredes de sua casa. Mas o cheiro de maças com canela tinha se impregnado em todos os cômodos, lembrando um amor que talvez nunca tenha existindo antes.
Delas só tinha restando mesmo um pouco de café solúvel e leite em pó, misturado com um gosto leve de cravo naquela xícara que aquecia apenas suas mãos.

13 de jun. de 2010

Moço das Asas

Nunca houve antes uma noite tão fria. Pelo menos não naquele quarto. Quando ele cruzou a porta, ela já sabia que não poderia respirar até o amanhencer. Abriu a janela, e deixou que as estrelas gélidas entrassem para cômodo. Nenhum dos dois se olhavam nos olhos.
Diante da mudez dela, ele acende um cigarro. Ela se perde nas fotos coladas na parede. Ali no meio de tantas imagens os dois pareciam felizes. Tenta falar, mas se cala ao ver daquela face assustada. Com o olhar cinza, ele parecia um ser celestial, sempre tão bonito, mesmo com o ar cansado que exalava.
Insistiram em falar o que todos já sabiam. O que mudaria tudo aquilo? As semanas os perseguiam com dúvidas. Só tinham certeza de que queriam estar ali.
Se abraçaram, sem nenhuma lágrima. E aos poucos, o sol nasceu naquela noite.

1 de jun. de 2010

No ontem de hoje

Ela só amava na saída. Vivia do medo de não ter amanhã.
Assim se privava da exposição de sua alma. Imaginava não perder as mãos que a enlaçavam. E então se dava conta de que quem imagina nada sabe. E isso ela já sabia.
Conhecia cada segundo da existência dele, porém não gostava de pensar nisso, talvez não gostasse de pensar nele. Quem sabe se não gostava dele mesmo? Já não ligava mais, tinha pouco tempo para pensar em besteiras.
E do amanhã ia se esquecendo. Aos poucos, como quem já não lembra mais da infância. Toda invertida, lembrou que esquecia e começou a viver.

8 de mai. de 2010

Tua

Outra vez senti cada parte do meu corpo trincar, quebrar e cair. A submissão tomava conta da minha existencia pouco a pouco. Então já não sabia respirar outra coisa que não teu ar, assim, junto ao meu.
Agonizando, mas ainda longe do fim, sinto teu corpo como uma dose de morfina, pesando sobre mim e apagando todas as minhas dores, lentamente.
Calo-me mais uma vez, como ousaria eu dizer-te tais coisas sem que me zombes? Bem sabes que nunca quis ser tua. Agora o que sabes? Nessa escuridão não podes mais ver minhas lágrimas. Mesmo assim sabes que nunca quis ser o que hoje sou. Tua, inteira, completa, e tua.

25 de abr. de 2010

Nossas Noites Gélidas

De repente abro os olhos, acordo. Como se você me puxasse de volta para a realidade, me olhando duramente, olhos cinzas, de pedra.
Finjo que não acordei, me viro de costas pra ti, e sinto tua frieza por todo meu corpo. Desejo loucamente que não me toques, mas quanto mais te nego, mais te tenho; então sinto suas mãos passeando levemente por minhas costelas.
Congelo-me toda, perco o ar. Perco o ar pois tenho medo. É assustador te ver assim, como uma criança, despertando com o sol na janela. Sei que tudo não passa de uma grande mentira, perdemos nosso tempo, nossas noites... Nos perdemos...
Me viro, e volto a ver teus olhos cinzas, e tudo não passa de um sonho. Vou voltar a dormir até anoitecer.

29 de mar. de 2010

Vergonha

Nossas mãos tão presas, e quanto a nós? Afogando-nos em nossas mentiras, mas nem por isso buscando a superficie. Presos à insesatez de nossos desejos mais egoistas, mais escondidos. Fecho os olhos e sinto seu gosto amargo, finjo ser doce, finjo ser flor.
Enquanto você constroe nosso castelo de areia debaixo dessa tempestade de ventos, eu tento estruturar nossas desculpas junto às criaturas absais de nossos sonhos. Vai doer, mas não vai acabar.
Queria te perguntar sobre o medo. Será que é certo temer o que não tem voz? Por que o silêncio assusta tanto? Te vejo mordendo os lábios, apertando os olhos e segurando o grito. Dá pena de nossas cores. Já assim, de tão poucos amores...
Vou deixando que a maré embale meu sono. Quanto a ti, já não sei nada, além de que não dormes mais.

24 de mar. de 2010

Quase verdes, quase amor

De nada adiantaria fechar os olhos. Quantos segundos seriam perdidos para sempre? Não, ela não ousaria deixar de viver essa infinidade de milésimos. Olhava fixamente para aqueles olhos quase verdes que pareciam ocilar no que diziam. Em silêncio, nem diziam.
O cheiro de terra molhada, que entrará pela janela, aos poucos ia se misturando, e também tornando parte, do cheiro de suas peles. O barulho da chuva era a única canção daquela noite. Um pouco triste, talvez.
Os olhos ainda brilhavam. Inquietos. Com uma questionavel sinfonia de cores.
Quem sabe se isso é amor? E se for só aquela coisa que faz o coração da gente bater mais rápido? Ou então, poderia ser apenas o medo de perder aqueles olhos.
Não se negava o direito da dúvida. Enquanto não soubesse não fecharia os olhos, não adormereceria... Não perderia.

25 de fev. de 2010

Medo de Dormir

Xícaras e mais xícaras de café, sujas e espalhadas pela casa. Algumas ainda pela metade, mas com o amargo remédio já frio. Remédio. Era assim, para curar o fim do dia. Aceitar o ínicio da noite era como aceitar o fim das coisas. Então se negava, não se entregava. Era medo. Só medo. Medo do amanhã que não é hoje, e do hoje que não pode simplesmente ir embora, sem nem dizer "até logo".
Ai, como era torturante vê-la assim. Olhos fundos, ossos fracos. Pensando e só. Já nem sabia no que pensar. Inventava fantasmas embaixo da cama. Inventava amores ao lado da cama, afogada na interminavel madrugada. Para ela ainda era dia.
Temia a escuridão, e com razão. Era cega de emoções, já não podia mais enxergar no escuro. Sentia e pensava. E assim não vivia. Quem pensa muito não tem tempo para viver.
Mais um ou dois cafés e ela esqueceria.

17 de fev. de 2010

Minha Estante

A clareza dos sentidos não significava nada. Talvez aprendesse isso, mas cedo ou mais tarde, com Woolf ou Lispector. De resto, só sabia que amava, sem poder, sem mais.
Era assim.
Agora era feliz. Sentada em sua cadeira, dentro daquele cômodo minúsculo que cheirava a madeira e bolor. Acompanhada? Sim, sempre com Brontë e seus pensamentos.
"Ela se fora". Simplesmente, se fora. Como um grito. Em um curto espaço de tempo.
Talvez as pessoas fossem assim mesmo. Amassem na ausência, e dela faziam a felicidade

9 de fev. de 2010

Em Cima do Parapeito

Imune ao mundo, como se ela tivesse anti-corpos que a defendiam da humanidade.
Era assim, sentada no parapeito, olhando para aquele céu sem estrelas.
Fria, quase morta.
Conforme seu coração ia secando, ela ia sentindo um pouco de dor.
Mas só um pouco.

5 de fev. de 2010

Sobre Asas e Medos

Ele sabia voar. Se quisesse, cruzaria o oceano batendo aquelas grandes asas. Voaria para perto do sol, por cima do mar e por entre as nuvens.
Sim, ele sabia voar. Aprendera quando ainda menino, porque não tinha medo. Crianças são assim, meninos são super-heróis.
Mesmo sem capa e super-poderes, ele ainda era um super-menino. Nunca crescera, e por isso ainda sabia sorrir. Se hoje andava triste, era por não saber que sabia. Sabia voar. Só não sabia que suas asas não eram de cera. Como um menino já não devia ter medo.
Mas que tipo de adulto é capaz de acreditar em super-asas, e de olhos fechados sair voando? Talvez ele tivesse dúvidas, pois mesmo sendo um super-menino, já deixara a inocência das crianças há muito tempo. Gostava de fingir-se de menino. Fingia não para os outros, mas para ele mesmo.
E era bonito quando sorria feito criança. Mostrava os dentes, fechava os olhos, e só então, voava.

2 de fev. de 2010

Felicidade Negra

Sob o céu negro, ela vinha com cabelo rente a nuca. Descalça, de pé no concreto, como gostava de andar. Trazia em uma das mãos um cigarro apagado, e na outra a Felicidade.
Essa tal Felicidade teve a ideia de tomar banho chuva. Porque ela era assim. Dada a liberdades. Cheia de vontades de mãos entrelaçadas, e livres ao mesmo tempo.
Era aquela outra, negra feito a noite, que lhe dava o nome exibido com graça em um sorriso, as vezes, gargalhada.
Sem dizer uma só palavra, a negra olhava para o céu, deixava chover em seus olhos, e agradecia pela noite parecer infinita.

10 de jan. de 2010

"Fél bebei por leite"

Aquele meio prazer lhe penetrava a alma com gosto de vida. Que vil criatura lhe daria tamanha glória lhe privando do gozo?
Não sabia que assim morria, pois já era doce morrer. Não dessas mortes que a gente vê por aí. Morria hoje de desgraça vestal, da doçura das cinzas do seu amor.
Amor esse que não inteiro, cedido pela medade. Incapaz de saciar a menor das sedes. Era de sede também que morria.
Sem medo da medusa que lhe olhava friamente, prendia o grito de dor, e só.

6 de jan. de 2010

Colecionadora

Perplexa. Assim estava ao olhar para aquela parede. Há quem colecione moedas, insetos, selos... Porém, nunca se tinha visto algo como aquilo. Corações, milhares deles, despedaçados e pregados em uma enorme parede já manchada de vermelho. Milimetricamente alinhados, como um exército chines, porém sem voz, sem vida.
Quando criança só queria colecionar flores de cerejeira, sempre se perguntando onde conseguiria tantas dessas flores. Agora se questionava onde conseguiram tantos corações. Até onde chegaria a crueldade dos adultos?
"O que alguém faria com tantos corações?" Isso não saía de sua cabeça. Não conseguia se dar conta de que há muito tempo nenhum batia dentro dela, vivia só daquela parede, que nem sua sabia que era.