24 de jun. de 2010

Sem Vontade

Abriu lentamente os braços e sentiu um pouco de vida indo embora pela porta. Petrificada, só conseguia olhar para o corredor escuro, e agora vazio. Não se incomodava com o vento gelado que subia pelas escadas, e nem tão pouco com sua vizinha tocando violão. Seu maior desespero era fechar aquela porta, diante do nada.
O breu que tomava conta da entrada principal já tinha dominado toda a casa, e aos poucos ela foi perdendo seus sentidos. Não tinha mais paladar, o gosto amargo que restava em sua boca desapareceu. Imperceptivelmente, ficou cega e deixou de ver o futuro. Era muda fazia horas. Mas nunca ficou surda. Não podia deixar de ouvir aqueles passos duros de quem vai embora, mesmo sem querer.
Tinha vontade de gritar, sair correndo, ser invisível e até não existir. Mas o que mais ela poderia fazer, se a porta ainda estava aberta, e ela continuava lá, imune ao resto do mundo, mas estraçalhada diante de um vulto fugitivo. Procurava não achar resposta para tantos por quês.
Não podia mais ser mulher. Não podia mais ser.
Talvez minta quem não olhe nos olhos ao falar. Talvez até haja covardia demais para se encarar uma pessoa nos olhos. Então sentiu um pouco de dor, fechou a porta, e conseguiu respirar novamente.

20 de jun. de 2010

Olhos de Amêndoa

Procurava qualquer fração de sol na esperança de aquecer seus sonhos. Nas mãos levava um xícara de café com leite. Logo ela que nunca gostou de leite, ou das coisas claras. Ainda se lembrava das mechas negras caídas sobre o rosto daquela à quem chamava de "pequena".
Já fazia tempo que o fim tinha se concretizado, destruindo todos os sorrisos pintados nas paredes de sua casa. Mas o cheiro de maças com canela tinha se impregnado em todos os cômodos, lembrando um amor que talvez nunca tenha existindo antes.
Delas só tinha restando mesmo um pouco de café solúvel e leite em pó, misturado com um gosto leve de cravo naquela xícara que aquecia apenas suas mãos.

13 de jun. de 2010

Moço das Asas

Nunca houve antes uma noite tão fria. Pelo menos não naquele quarto. Quando ele cruzou a porta, ela já sabia que não poderia respirar até o amanhencer. Abriu a janela, e deixou que as estrelas gélidas entrassem para cômodo. Nenhum dos dois se olhavam nos olhos.
Diante da mudez dela, ele acende um cigarro. Ela se perde nas fotos coladas na parede. Ali no meio de tantas imagens os dois pareciam felizes. Tenta falar, mas se cala ao ver daquela face assustada. Com o olhar cinza, ele parecia um ser celestial, sempre tão bonito, mesmo com o ar cansado que exalava.
Insistiram em falar o que todos já sabiam. O que mudaria tudo aquilo? As semanas os perseguiam com dúvidas. Só tinham certeza de que queriam estar ali.
Se abraçaram, sem nenhuma lágrima. E aos poucos, o sol nasceu naquela noite.

1 de jun. de 2010

No ontem de hoje

Ela só amava na saída. Vivia do medo de não ter amanhã.
Assim se privava da exposição de sua alma. Imaginava não perder as mãos que a enlaçavam. E então se dava conta de que quem imagina nada sabe. E isso ela já sabia.
Conhecia cada segundo da existência dele, porém não gostava de pensar nisso, talvez não gostasse de pensar nele. Quem sabe se não gostava dele mesmo? Já não ligava mais, tinha pouco tempo para pensar em besteiras.
E do amanhã ia se esquecendo. Aos poucos, como quem já não lembra mais da infância. Toda invertida, lembrou que esquecia e começou a viver.